o crime dos imigrantes ilegais

Posted in Uncategorized by teologarte.com.br on 15/07/2009

(the crime of illegal immigrants)

“Se vós tendes o direito de dividir o mundo em italianos e estrangeiros, reclamo o direito de dividir o mundo entre deserdados e oprimidos de um lado, privilegiados e opressores de outro. Os primeiros são a minha Pátria, os outros os meus estrangeiros.”

– Don Lorenzo Milani (1923-1967), sacerdote católico italiano

“Não afligirás o estrangeiro nem o oprimido, pois vós mesmos fostes estrangeiros na terra do Egito.”

– Bíblia, livro de Êxodo, cap. 22, v. 21

Governo brasileiro anuncia anistia aos imigrantes irregulares em 2/7/09 (foto: Isaac Amorim)Recentemente foram divulgadas duas notícias praticamente simultâneas: na Itália, foi aprovada uma lei que torna crime a entrada ou a permanência de um estrangeiro em território italiano sem o visto apropriado; já no Brasil, foi sancionada uma anistia que tira da ilegalidade aproximadamente sessenta mil imigrantes estrangeiros. Minha família é em parte de Governador Valadares, terra de imigrantes, mas esse não é o único motivo pelo qual devo ser sensível à penosa situação dos imigrantes ilegais em todo o mundo. Como cristão, leio em muitos textos na Bíblia que o povo de Deus tem o dever de proteger os direitos do órfão, da viúva e do estrangeiro. A hospitalidade é – ou deveria ser – uma virtude cristã.

Não pretendo fazer apologia da imigração ilegal. Desaconselho qualquer brasileiro que esteja planejando ir trabalhar ilegalmente na Europa ou nos Estados Unidos, com a esperança de encontrar melhores condições de vida. Sei por experiência própria que o simples fato de viver no exterior, mesmo com tudo em ordem e com uma boa estrutura, já é difícil. Pode até ser que, em alguns casos, a aventura da clandestinidade compense financeiramente, mas não há dinheiro que pague o estigma de viver sob tensão constante em uma terra que não é a sua. Há ainda o problema do tráfico de seres humanos, controlado por máfias que recrutam suas vítimas com falsas promessas de sucesso fácil no estrangeiro.

Mas se o incentivo à imigração clandestina está fora de questão, torná-la um crime parece ainda mais descabido. O único crime cometido pelo estrangeiro em situação irregular é não ter conseguido o visto apropriado. É verdade que, tecnicamente, isso pode perfeitamente ser considerado um crime, pois se trata da violação de uma lei. Mas o fato dessa criminalização ser possível em termos legais, não significa que seja automaticamente ética ou moral. É preciso considerar, assim, se o sistema de vistos de entrada ao qual nos acostumamos e nos submetemos ao viajar para o exterior é eticamente defensável. Não pretendo neste artigo discutir detalhes da legislação migratória italiana ou brasileira. Para simplificar o argumento, uso a expressão “sistema de vistos de entrada” de forma generalizada para definir o tipo de legislação migratória que, com maior ou menor rigor, é aplicado com a mesma lógica, os mesmos objetivos e as mesmas características fundamentais em todo o mundo.

O principal efeito do sistema de vistos é discriminar entre as pessoas que podem entrar e permanecer em determinado território. Em termos gerais, as regras são estabelecidas de modo a permitir que os candidatos mais ricos e com melhores condições sociais possam estabelecer residência em determinado país e, ao mesmo tempo, impedir o acesso aos menos favorecidos. O sistema incentiva a famosa “drenagem de cérebros”, pela qual pessoas com melhor nível educacional deixam os países mais pobres em busca de melhores oportunidades nos países chamados desenvolvidos. Aqueles mais necessitados, que poderiam se beneficiar mais das oportunidades oferecidas pelo mercado de trabalho do “primeiro mundo”, ou têm a entrada negada, ou, forçados à clandestinidade, perdem o direito a condições dignas de vida. Ao invés de proteger os mais pobres, o sistema os penaliza.

Manifestação de imigrantes em Treviso, no norte da Itália (Foto: Gary Houston, Wikimedia Commons)

Infelizmente, até mesmo a Declaração Universal dos Direitos Humanos consagra, em seu Artigo XIII, esse sistema discriminatório, ao restringir somente “às fronteiras de cada Estado” o direito básico que as pessoas têm à liberdade de locomoção. Aceitamos essa restrição como algo normal, como se o fato de cruzar uma fronteira ou ter outra nacionalidade tornasse alguém menos humano e, por isso, titular de menores direitos.

O delito do imigrante ilegal é não satisfazer os requisitos de um código de leis que dificilmente pode ser considerado legítimo, pois foi criado sem a sua participação e com o objetivo principal de mantê-lo fora de determinado território. Teoricamente, quando existem leis injustas, a população interessada pode se manifestar e protestar para mudá-las. Mas a peculiaridade da legislação migratória é que os principais afetados não são ouvidos na sua elaboração e não tem, por definição, direito a voto. A opinião dos imigrantes clandestinos não conta nos cálculos da classe política. Prevalece a noção egoísta e xenófoba de que o sistema protege os interesses e os empregos da população local.

Acontece que, na Itália e nos países ricos em geral, os imigrantes desempenham tarefas essenciais e básicas – segurança, limpeza, cuidado com crianças e idosos, entre outros serviços -, às quais a população local não quer mais se submeter. Uma vez que há grande demanda por esses serviços que só os imigrantes estão dispostos a prestar, a legislação não consegue impedir a entrada dos estrangeiros, mas tem o efeito conveniente e perverso de baratear o custo da mão de obra. Quem está em situação irregular é obrigado a se submeter a trabalhar muito ganhando pouco, abrindo mão, involuntariamente, de direitos que os trabalhadores dos países ricos conquistaram ainda no século XIX.

Triste ironia é o fato que o sistema de vistos costuma ser implementado com base no princípio da benignamente chamada “reciprocidade”, na melhor tradição “olho por olho, dente por dente”. Assim, o mesmo tipo de legislação, com os mesmos critérios, acaba sendo colocado em prática até mesmo pelos países mais pobres, que teriam grande interesse em abolir completamente tal sistema. Assim são geradas situações como a que prevalecia no Brasil até junho de 2009, com aproximadamente sessenta mil estrangeiros – principalmente bolivianos, peruanos e chineses – vivendo no nosso país, no século XXI, em condições próximas à escravidão. Merece elogios a anistia anunciada pelo Governo brasileiro, que restituiu àqueles imigrantes os direitos que sempre deveriam ter tido pelo simples fato de serem humanos. Mas é preciso enxergar que foram nossas próprias leis migratórias que levaram à situação acima descrita.

A forma mais fácil e rápida para acabar de vez com a imigração ilegal não é recorrer a mais repressão e a leis mais rígidas. Bastaria simplesmente abolir o sistema de vistos e dar às pessoas a mesma liberdade de circulação transfronteiriça de que já gozam, em larga medida, o capital financeiro e as mercadorias. Enquanto isso não acontece, os cristãos têm a responsabilidade moral de levantar a voz em defesa dos imigrantes. Na Itália, a Igreja Católica já se manifestou contra a nova lei que criminaliza a imigração irregular, mas os protestos aparentemente não surtiram efeito. No Brasil, essa seria uma bandeira digna de ser defendida pelas bancadas evangélica e católica no Congresso, que assim deixariam um pouco de lado a mera busca dos interesses mesquinhos de suas respectivas organizações religiosas. Tal iniciativa seria ainda um importante testemunho para a sociedade brasileira, que – freqüentemente com bons motivos – vê os cristãos, e particularmente os evangélicos, com crescente desconfiança.

– julho de 2009

 

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